Sportswashing: tudo para manter a boa imagem do Estado

Uma coisa notável no futebol nas últimas décadas é a presença de patrocinadores em todo lugar. Seja em placas de publicidade de grandes torneios, nas camisas, e até mesmo nos cenários das coletivas de imprensa. Fato é que todas essas situações fazem de um esporte que com o passar dos anos movimenta cada vez mais capital, se torne um outdoor e um espaço de promoção. Para compreendermos esse fenômeno, basta realizar uma simples equação: os clubes precisam de dinheiro para se manterem fortes, competitivos e relevantes e em retorno, seus patrocinadores exibem suas marcas em todo lugar.

O problema é que em alguns casos relacionados ao patrocínio de empresas e injeções de dinheiro vão além do financeiro e do esportivo e há muitas coisas por trás disso. Vários países com governos de caráter autoritário têm investido caminhões de dinheiro no esporte, pois estes sabem que os investimentos nessa área lhes podem dar uma boa imagem. Tal ato é conhecido como “sportswashing”.

E não pense que isso é um fenômeno novo. Todos sabem que o esporte é um meio poderoso e pode sim ser usado para fins políticos. Um exemplo de que isso sempre existiu são as Olimpíadas de 1936 realizadas em Berlim, sendo usados como uma promoção da imagem do regime nazista ou até mesmo na época do Império Romano, com os duelos de gladiadores.

Talvez um dos melhores exemplos de lavagem esportiva por parte de governos autoritários é o Catar. O pequeno e rico país do Golfo investiu bilhões em clubes como é o caso da compra e injeções de dinheiro em cima do PSG desde 2011, bancando contratações de estrelas e transferências de valor recorde como a contratação de Neymar. O resultado disso é o domínio do Paris Saint-Germain em seu cenário nacional, ganhando 7 títulos de liga em 9 anos. Além de investir em times, o país fundou uma rede de canais esportivos com serviços em vários países no mundo, que é a BeIN Sports, além é claro, de conseguir os direitos para sediar a próxima Copa do Mundo.

Mas nos bastidores, a situação não é nem um pouco transparente. O país tem sido fortemente acusado de violar os Direitos Humanos, principalmente com relação aos direitos trabalhistas dos operários envolvidos nas construções dos estádios, em sua maioria imigrantes de países como Nepal e Bangladesh. As condições de trabalho são desumanas e contam com jornadas são extensas, salários extremamente baixos e condições de vida, precárias. De acordo com a Anistia Internacional, 20 mil operários envolvidos nas construções, um terço perdeu a vida..

Vale lembrar que o Catar também investiu em outros clubes europeus. Um deles foi o Barcelona que tinha uma tradição de 111 anos sem exibir um patrocinador master na camisa e em 2011 acetou exibir em sua camisa o nome do país do Oriente Médio por cinco anos e 150 milhões de euros. Os dois primeiros anos com a Qatar Foundation e o período restante com a companhia aérea Qatar Airways. Aliás, esta segunda empresa patrocina outros grandes clubes como a Roma, o Boca Juniors, a Libertadores, as competições da FIFA e o Bayern de Munique. O clube bávaro recebe 10 milhões de euros anualmente da empresa pertencente ao governo do Catar e em retorno o gigante alemão viaja a Doha para realizar a pré-temporada de inverno(assim como o PSG).

Tratando-se do Bayern, há muitas críticas de torcedores do clube com relação a essa parceria entre o clube e as estatais do emirado. Já foram vistas faixas exibidas pela torcida bávara com protestos contra os acordos entre Bayern e Catar, questionando a forma da qual o clube lida com direitos humanos. Pelo visto parece não interessar muito aos dirigentes de clubes e federações, que preferem o dinheiro oferecido pelo estado asiático, do que enxergar que este mesmo os paga para promover a sua boa imagem baseada em riqueza financeira expressada em edificações de luxo, que na verdade é um tapete por cima da pobreza presente no país e as violações do estado aos direitos humanos, tanto em sua legislação baseada em valores religiosos e no seu sistema laboral de caráter escravocrata.

O exemplo do Catar se assemelha bem aos vizinhos dos Emirados Árabes. Em 2008, o grupo de investimentos estatal do país liderado pelo sheik Mansour da Família Real de Abu Dhabi comprou as ações do Manchester City. Desde então, o emirado já gastou 1 bilhão de libras só em transferências. Os investimentos geram controvérsia até hoje, chocando-se inclusive com as normas do Fair Play Financeiro da UEFA. Claramente, os investimentos geraram resultados, como quatro títulos ingleses para o City. O clube de Manchester hoje conta com um projeto de futebol completo e uma infraestrutura incrível para os times profissionais  e de base, tanto no futebol masculino como no feminino.

Mas como o assunto do artigo é lavagem esportiva, há um outro interesse por trás dos investimentos, que tem a ver com promoção governamental e que são panos quentes passados sobre a realidade do país. O fato de ser um estado rico e o destino de férias de muitos atletas e celebridades, representa uma minoria dos Emirados Árabes. 90% da população do país é composta por imigrantes, e maioria vasta desta parcela recebe baixos salários e vive em condições de pobreza. Sem contar que é um estado virtualmente antidemocrático e a liberdade de expressão é nula.

Mas os investimentos de Abu Dhabi no futebol vão além de um clube na Inglaterra. O grupo empresarial árabe é responsável por um conglomerado de clubes, do qual os azuis de Manchester também fazem parte. Trata-se do City Football Group, que é dono ou posui parte das ações de diversos clubes ao redor do mundo; New York City(EUA), Girona(ESP), Melbourne City(AUS), Torque(URU), Mumbai City(IND), Yokohama Marinos(JAP), Lommel(BEL), Sichuan(CHN) e mais recentemente, o conglomerado comprou as ações do Bolívar(BOL).. O grupo City é uma plataforma para o governo de Abu Dhabi expandir sua imagem e influência mundo afora.

Clubes com 100% das ações pertencentes ao grupo, possuem as mesmas cores e o mesmo patrocinador master que é a Etihad Airways, uma das duas companhias aéreas estatais dos Emirados Árabes, que se movimentam muito bem no mercado. A compatriota Fly Emirates sobrevoa muito bem sobre a elite do futebol europeu. Um dos clubes patrocinados pela empresa, é nada mais nada menos do que o clube de mais sucesso no mundo, que é o Real Madrid, desde 2013. A companhia aérea de Dubai também é a patrocinadora do Milan, do Benfica e do Arsenal. Por falar nos Gunners,, a Emirates patrocina o Arsenal desde 2006. É o patrocínio mais longo da história da Premier League, e não está só na camisa, mas também no nome do estádio. A casa do Arsenal levará o nome de Emirates Stadium até 2026, quando se encerra o período de naming rights do Emirates Stadium.

Não é que o governo de Dubai seja o dono do Arsenal, mas sua reputação internacional foi normalizada por muitos anos, muito tempo antes do termo sportswashing começar a ganhar determinada força. Talvez isso faça com que o pano sobre o que é feito pelo governo dos Emirados Árabes fique ainda mais quente, visto que com o passar dos anos o torcedor do Arsenal se acostumou com o nome de sua parceira financeira, que sua marca está muito associada ao clube. Vale lembrar que é a Emmirates que transporta e patrocina as turnês de pré-temporada do clube ao redor do mundo.

É certo que um clube de reputação internacional como este tem torcedores em vários cantos do planeta. Até mesmo o presidente de Ruanda, Paul Kagame é torcedor declarado do Arsenal. Embora o país africano seja um dos mais pobres do mundo e receba apoio financeiro da União Europeia, o país assinou um contrato de patrocínio milionário com o clube do Norte de Londres. Desde 2018, a logo da Visit Rwanda é exibida na camisa do Arsenal. De acordo com o próprio governo, esta parceria traria benefícios ao país através do turismo e como parte do acordo, o Arsenal também sedia acampamentos de treino em Ruanda. De acordo com a Human Rights Watch, a liberdade de expressão e de imprensa são muito baixas. Críticos de Kagame, que está no poder há mais de 20 anos, dizem que este acordo exemplifica a figura de um autocrata que prioriza uma aixão particular ao subsidiar um dos clubes mais famosos no mundo, ao mesmo tempo que busca promover uma melhor imagem sobre si proprio. Em 2019, o país também fez um novo acordo de patrocínio com o PSG, mostrando que a tendência da promoção através do mercado esportivo não é só uma tendência para estados do golfo.

Não são só os clubes que são afetadas pelas ricas e perigosas aventuras de lavagem esportiva, mas também as federações. Sim. As entidades que comandam, que ditam as normas e regras do jogo também estão cedendo a este fenômeno. Um destes casos que exemplificam isso é o da Socar com a UEFA. A estatal do Azerbaijão, que é governado desde os anos 90 pela família Aliyah, tem sua marca exibida em todos os jogos de competições internacionais da UEFA, a mesma que puniu por violações ao fair play financeiro, um clube que assim como a entidade é atingido pela lavagem esportiva. A Socar, querendo ou não, é uma empresa fundamental para a economia do Azerbaijão, sendo responsável por 90% das exportações do país e abastece metade do orçamento nacional. Mas o Azerbaijão, também chegou a patrocinar clubes, como foi o caso do Atlético de Madrid de 2012 a 2014. . Embora o Atleti tenha chegado à final da Champions League em 2014, exibindo a marca azerbaijana, foi um sucesso de marketing para o país.  Sua capital, Baku, chegou a ser sede da final da Europa League entre Chelsea e Arsenal. Torcedores dos dois clubes londrinos teriam que viajar 4 mil quilômetros para acompanharem seus clubes na final. Em resultado de todo esse deslocamento, a final não teve nem casa cheia.

Talvez o Azerbaijão ainda possa aprender uma coisa ou outra com a Rússia. Aliás, quando o assunto é sportswashing, os russos são líderes e pioneiros. e quem se destaca nisso, é a companhia de gás estatal Gazprom. O governo russo possui mais da metade das ações da empresa que é a patrocinadora master do Schalke 04 desde 2007 em um acordo de 150 milhões de euros. A companhia de gás também é proprietária do Zenit de São Petersburgo desde 2005 e o tornou uma potência no futebol russo, o possibilitando a fazer contratações de jogadores importantes como Marchisio, Hulk, Axel Witsel e Malcom. Com o Zenit, a cempresa faz ropagandas em piers e navios para dar um tom heroico ás expedições no Ártico. A parceria também atingem competições, como é o caso da Champions League, da qual a Gazprom é uma das principais patrocinadoras desde o ano de 2012. Os Russos sabem bem como jogar este jogo. A Copa de 2018 teve a Gazprom como um de seus principais patrocinadores e foi a coroação do sportswashing russo.

As ações russas sobre o esporte camuflam também os sérios problemas relacionados aos direitos humanos no país. Vale lembrar que no país a liberdade de expressão é muito limitada o pais, inclusive qualquer manifestação de homossexualidade em público é proibida no país, e há muitos abusos de direitos sobre opositores do governo Vladmir Putin.

Fato é que o sportswashing é uma prática política, na qual governos controversos e ditatoriais tentam limpar sua imagem usando da paixão popular. Claro que já se viram fenômenos como esses no século passado, levando em conta a ligação de Mussolini á Lazio, a suposta influência de Franco no Real Madrid, a relação de Pinochet com o Colo Colo, a organização da Copa do Mundo de 1978, entre vários outros ocorridos de influ~encia política no futebol. Estes fatos geram um entendimento de que futebol e política sempre andaram lado a lado, seja com o futebol inflluenciando na política, ou vice-versa. Isso acontece para o bem e para o mal.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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