Há tempos que, em nosso país, a sapiência tenta, das mais diversas maneiras, sobrepor a paixão ao futebol. De certa forma, o suprassumo da sabedoria brasileira relega o esporte ao “pão e circo”, uma massa de manobra Orwelliana, tal qual aquelas presentes na obra “1984”, para tapear a prole. Ou seja, bebendo na fonte do simplismo, ébrios dos corredores acadêmicos, teimam em não vislumbrar, seja no passado ou presente, as montanhas movidas, o fulgor popular, decorrente de uma “reles” partida.
Mais que ”pão e circo”
Afinal as arquibancadas, desde cedo, expandiram a liberdade do cidadão. A semana sufocante, maquinada pelo trabalho e deveres mesquinhos, repetitivos, desembocava, ao fim dela, uma alegria cronometrada, levando milhares de pessoas – até o século 20, centenas de milhares – à procissão pelo abstrato: incentivar o desejo de 11 homens, fardados e treinados, à vitória, no intuito do adversário rastejar aos seus pés. E terminada a escaramuça, a plateia evade o coliseu, retirando a fantasia de torcedor para, logo em seguida, vestirem-se à maneira dos dias úteis, marcando o retorno à programação normal.
Diversas foram as agruras do tempo, com o futebol tendo sua importância, refletindo as vontades populares e, inevitavelmente, impopulares – por exemplo, os casos de Sportswashing. Isto posto, abaixo, relembraremos alguns momentos em que o desporto ultrapassou as barreiras do entretenimento.
Chile
O Estádio Nacional do Chile, além dos inúmeros jogos sediados, foi local de torturas e mortes, contra opositores do regime, durante a Ditadura Militar, liderada por Pinochet – nesse ínterim, Carlos Caszely negava um aperto de mão do crápula chileno, tornando-se um dos maiores adversários do golpista.
A taça manchada de sangue
Enquanto muitos argentinos celebravam a conquista da Copa de 1978, sediada no país, outros, a poucos metros do Monumental de Nuñez, palco da final, estavam trancafiados na Escola Superior de Mecânica da Marinha (ESMA), centro de repressão e tortura do governo de Videla. Tendo em vista que a competição serviu como propaganda do governo, incentivada pelo então presidente da FIFA, o brasileiro João Havelange.
Doutor Sócrates e os asseclas da liberdade
A “Democracia Corinthiana”, liderada por Sócrates, Wladimir e Casagrande, pedia o fim da Ditadura, no Brasil, com o slogan “ganhar ou perder, mas sempre com democracia”. E o movimento, com as manifestações antifascistas, em 2020, voltou a ser lembrado, devido ao grande número de torcedores que fizeram referências ao grupo.
Tango vingativo
Em 1986, no Mundial do México, os Hermanos, que já estavam livres da tirania militar, aplicavam sua “revanche”, dentro das quatro linhas, contra os ingleses, vencendo-os por 2 a 1. Afinal de contas, no ano de 1982, os argentinos haviam sido derrotados na Guerra das Malvinas. O clima beligerante chegou às torcidas, ocorrendo confrontos entre hinchas e hooligans.
O “diplomata” futebol
Já em 1998, os antagonistas políticos, Irã e Estados Unidos, enfrentaram-se, na copa da França, com vitória dos persas e flores em prol da esportividade, unidos, os dois elencos, a favor da paz. Somente os líderes dos dois países não entenderam a mensagem — ou não quiseram entende-la.
Stop!
1999 marcou o amistoso entre Partizan de Belgrado e AEK Atenas, na Sérvia. Os jogadores dos dois times, perfilados, empunhavam a faixa “NATO stop the war, stop the bombing” (OTAN pare a guerra, pare o bombardeio) em decorrência do ataque feito pela OTAN, em Belgrado, no dia 24 de março daquele ano, no intuito de cessar a agressão dos sérvios, contra os kosovares, e derrubar Slobodan Milosevic. A ideia do duelo, na época, surgiu de Dimitris Melissanidis, atual proprietário do clube grego, em apoio aos sérvios.
Consciência norueguesa
Mais recentemente, nas eliminatórias europeias, atletas da seleção da Noruega protestaram a favor dos direitos humanos, apoiando os operários das construções dos estádios do Catar, para a Copa de 2022. Até porque, no país sede, tornou-se corriqueira a morte desses trabalhadores – muitos deles eram imigrantes. Em junho, os clubes da nação escandinava, num congresso, debaterão sobre um possível boicote ao torneio.
Conclusão
Por fim, como declarava o filósofo Albert Camus, “O que eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem, eu devo ao futebol”. Portanto, creditar o esporte como algo à margem de tudo o que ocorre, seja no Brasil ou no exterior, não passa de uma bazófia.
Bem como o fazem alguns acadêmicos, forjados pelo sentimento de soberba, proveniente do pseudoconhecimento acima da média, cristalizaram a antiquada ideia de “massa de manobra” e, até o momento, relutam em aceitar o mais verossímil dos fatos: a harmonia entre futebol e o povo. Se o povo não está dentro dos estádios, devido a elitização hodierna, está ao redor, pulando, abraçando uns aos outros, numa amalgama de paixão, felicidade e emoção. Todavia, apenas os tolos aceitam a negação desta verdade.
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