Lilian Thuram, a estrela negra

Lilian Thuram

Ativista político, embaixador da UNICEF, militante do Movimento Negro, dono da fundação Lilian Thuram – criada com o objetivo de conscientizar e combater o preconceito racial -, autor de 11 livros e, curiosamente, quase Sacerdote. Este é Ruddy Lilian Thuram-Ullien, francês de 49 anos.

Ou para os amantes de futebol, apenas Lilian Thuram. Ex futebolista que atuava como zagueiro/lateral-direito, e que em sua carreira já vestiu a camisa de clubes como Monaco, Parma, Juventus, Barcelona e, claramente, com a camisa da seleção francesa, onde, inclusive, tornou-se o jogador com mais atuações na história: foram 14 anos de serviços à seleção, com 142 partidas disputadas.

Dentro de campo, Thuram ficou conhecido como um jogador rápido, forte, versátil e principalmente: uma inteligência acima da média. Valências que, certamente, acompanhavam o jogador fora de campo. Tendo em vista seus frequentes posicionamentos, ainda como jogador, sendo o racismo sua principal pauta; e que posteriormente, ampliou sua militância à luta contra a homofobia, xenofobia, o sexismo e etc.

Criado por mãe solteira junto a quatro irmãos, Lilian morou parte da sua infância na Ilha de Guadalupe, localizada nas Antilhas Francesas, sua cidade natal. Aos 9 anos de idade se mudou para França com sua família, onde moraram no bairro parisiense Fontainebleu, no subúrbio da capital francesa. E já, ali, notou a chaga do racismo, quando na escola fora apelidado por seus colegas brancos de Noiraude, o nome de uma vaca preta e burra de um desenho animado que passava na televisão francesa há época. O que o fez questionar o ‘’porquê’’ daquilo e recorrer a ajuda.

A primeira resposta, certamente, veio de casa, com sua mãe:

— ‘’Perguntei à minha mãe, “por que a cor negra tem esta conotação negativa?”, e ela me disse que as pessoas são racistas e que isso nunca iria mudar. Não foi a melhor resposta que tive.’’

Porém, com o tempo, Lilian passou a entender a situação:

— ‘’Com sorte, encontrei pessoas que me ajudaram a entender que o racismo é uma coisa cultural. Só assim compreendi que ela (a vaca negra) era relacionada à imagem da escravidão, e que isso vinha dos políticos brancos, que construíram a imagem da inferioridade dos negros para melhor explorá-los. Passei a perceber que os negros nunca tiveram problemas, o que aconteceu é que nos disseram que tínhamos problemas.’’

A partir dessa compreensão não faltaram momentos para que Thuram se posicionasse. E o sacerdote foi à denúncia!

FRANÇA X ARGÉLIA

No dia 06 de outubro de 2001, aconteceu o que, para muitos, seria impossível: França e Argélia se enfrentaram oficialmente numa partida de futebol pela primeira vez na história. O jogo havia como pauta a integração, já que, apesar dos títulos de 1998, 2000 e 2001, a crise social na França, em especial nos subúrbios, onde haviam muitos imigrantes, era alarmante. E tentar propor uma reconciliação utilizando o futebol como ferramenta era uma opção mais formidável e menos grosseira.

Porém, havia ali mais que uma partida de futebol, Conforme Dubois. Levando em consideração o fato da colonização dos franceses ao continente do Magreb (região noroeste da África, onde situa-se a Argélia) no final do século 19/início do século 20, o que levou a exploração de suas terras e riquezas minerais, em detrimento da pauperização da população. Houvera resistência ao devastador colonialismo, entretanto sem sucesso. Em 1950, os argelinos a fundaram a FLN (Frente de Libertação Nacional), que havia em seu âmago propor uma série de ataques ao seu colonizador, tudo em busca de sua emancipação. Sendo assim, em 1955 a França impôs a Lei marcial que acabou prendendo, matando e torturando todo argelino que opusesse ao poder estabelecido. Só após muito sangue derramado, com cerca de 1 milhão de argelinos mortos, em 1962, a Argélia finalmente conseguiu sua independência.

Apesar disso, a França seguiu vivendo tensões com os imigrantes, em especial com os magrebinos. Já que com o fim da Segunda Guerra Mundial, com o país em frangalhos, a reconstrução necessitaria desta mão de obra, o que facilitou a imigração dos africanos do Magreb, que foram postos sob condições deploráveis de infraestrutura.

Logo, havia ali todo um contexto histórico. E a pauta da reconciliação, da paz, começava a ficar abstrata por conta de todo ressentimento. E dentro de campo não foi diferente… visto que, ao entrar em campo, a seleção francesa foi vaiada, assim como a Marseillese (hino francês), e cada jogador, exceto Zidane. Aos 79° da segunda etapa, a França vencia o jogo por 4×1, quando Sofia Benlemmane, jogadora de futebol, cidadã dos dois países, decidiu que devia evitar a derrota – talvez pelo ressentimento, ou até mesmo o orgulho de não aceitar uma outra derrota para os franceses, até ali, naquele contexto – e invadiu o campo com a bandeira da Argélia. O que desencadeou um alvoroço no estádio, fazendo com que dezenas de torcedores a acompanhassem em seu ato, que acabou fazendo com que fossem presos, incluindo Sofia.

Thuram fora flagrado discutindo de maneira descortês com um torcedor, chegando a ser contido por um segurança.

— “Fiquei tão furioso que algumas pessoas estragaram um jogo tão importante. Foi importante pelo que aconteceu recentemente e pelas esperanças de que nossos países pudessem se aproximar, mas ele (o torcedor), como os outros, estragou tudo”, disse Thuram ao L’Equipe após o jogo.

Em 14 de novembro de 2001, Jean-Marie Le Pen, político ligado a extrema-direita francesa — àquele que em 1996, durante a Eurocopa, disse que haviam muitos negros representando a seleção —, reuniu seus apoiadores em frente ao Stade de France e anunciou que, mais uma vez, seria candidato à presidência da França. E que escolheu aquele local porque fora onde, semanas antes, o hino nacional francês tinha sido vaiado.

O discurso fez com que chegasse ao segundo turno, quando, para evitar sua vitória, todos se uniram para apoiar Jacques Chirac, inclusive os jogadores de futebol, como Desailly, Thuram e Makelele. Dessa forma, Le Pen foi derrotado, tendo Chirac obtido 80% dos votos e sendo eleito presidente do país.

E apesar da discordância com o modo como reagiram alguns argelinos – também descendentes – ao amistoso da integração, Thuram fez questão de ir contra, quem contra eles fosse contra.

O NÃO A LAZIO

Em 2001 o Parma precisava negociar Thuram e recebeu uma oferta da Lazio, equipe da capital italiana, negativamente ligada a extrema direita romana, e que anos antes havia feito uma série de protestos (por pressão de seus Ultras) a contratação de Aron Mohamed Winter: holandês, filho de mãe mulçumana e pai de origem judaica; o primeiro negro na história a vestir a camisa dos biancocelesti, onde foi praticamente obrigado a negar suas raízes por conta da série de ataques que recebia dos torcedores. Hora com pichações pedindo sua saída, acompanhadas de suásticas, hora com ligações ameaçadoras.

E a figura central desta ligação, sem sombras de dúvida foi Mussolini, líder do Partido Nacional Fascista. Embora assumidamente torcedor do Bologna, ele costumava frequentar muitos jogos da Lazio e fora tão bem recebido que passou a ser sócio do clube. A torcida da Lazio era a que possuía um maior alinhamento com o governo fascista, que esteve no poder entre 1922 à 1943, implementando um regime ditatorial e totalitário, tendo como seus ideais o (Ultra)nacionalismo, xenofobia, antissemitismo e anticomunismo. E ele (Mussolini), sabendo que o futebol era o esporte mais popular do país, utilizou-o como ferramenta para disseminar sua propaganda política.

Sendo assim, Lilian exclamou:

— ‘’não jogo para fascistas!’

Thuram x Sarkozy

No ano de 2005, Sarkozy, então Ministro de Interior, fez visitas aos subúrbios e fez questão de achincalhar os seus moradores: primeiro, chamando-os de “ralé” e, posteriormente dizendo que ia limpar Courneve (comuna francesa) com a mangueira Karcher — uma mangueira de alta pressão utilizada para limpar fachadas, com produtos químicos, deixando a pedra bonita e branca.

Porém, o pior dos atos, além da redução de subsídios aos subúrbios, e que só escancarou a crise, foi quando dois jovens da Mauritânia (país africano também colonizado pelos franceses), moradores de Clich, foram jogar futebol em um subúrbio vizinho e, perseguidos pela polícia, morreram eletrocutados em uma estação elétrica. Sarkozy enfureceu ainda mais as famílias e os moradores dos subúrbios, quando, um dia após a morte de Bouna e Zyed (os jovens eletrocutados), disse que os meninos pretendiam roubar algo e que a polícia não os perseguira quando foram para estação elétrica.

Sabendo disto, não faltavam motivos para que Thuram fosse frontalmente contra o ministro. Afinal, lembremos que Lilian morou no subúrbio de Paris e, assim como aquelas pessoas, sofreu com os mesmos preconceitos. Logo, o embate perdurou…

Ainda em 2005, a país estava com os ânimos exaltados durante os protestos nas periferias. Thuram saiu em defesa dos imigrantes pobres que saíam as ruas. À época, Nicolas Sarkozy taxou os protestantes como “escória da sociedade”.  No entanto, Thuram foi contrário:

— “Se os protestantes são a escória, eu também sou. Muitas destas crianças nos subúrbios não encontram nenhuma forma de sobreviver e por isso são violentas. Eu não justifico esta violência, mas compreendo a situação’’.

Já em 2006, eles voltaram a entrar em conflito. Thuram acusou Sarkozy de ser o causador das desgraças acometidas nos subúrbios com seus discursos e políticas xenofóbicas. Tudo isso num programa em TV aberta. E ainda trouxe a memória do ministro o fato de que seu pai foi um húngaro refugiado em tempos de guerra que migrou para a França durante a Segunda Guerra Mundial, o que, portanto, seria uma grande contradição.

Contudo, depois de anunciar sua aposentadoria em 2008, devido a problemas cardíacos, ele (Thuram) recebeu o convite do então presidente francês, Nicolas Sarkozy, para ser ministro da Diversidade. Mas por ‘’razões óbvias’’, como disse Lilian, o mesmo negou. Ele ressaltou que ainda se via cru para ser atuante na vida política, além de sua discrepância para com o atual Governo. Quatro anos mais tarde, em 2012, Lilian subiu no palco de uma convenção para apoiar François Hollande, político do partido Socialista, que disputara a presidência contra Nicolas. Lá, ele disse:

— ”Em 6 de Maio (dia das eleições) temos que escolher entre continuar contra estes abusos – xenofobia, islamofobia, assédio a imigrantes – e a integração. Eu sempre vou votar pela integração.”, disse.

CRITÍCA AO REI DO FUTEBOL

No ano de 2013 o Brasil vivia uma crise política e social gritante, enquanto sediava a Copa das Confederações. Com base nisso, o povo foi à rua, na tentativa de reduzir as tarifas de transportes públicos, tal como os gastos excessivos para a disputa do Mundial, que aconteceria no ano seguinte (2014).

Pelé, o Rei, diante da revolta da população, pediu para que eles ‘’não misturassem as coisas’’ e que, ao invés disso, apoiassem a seleção, que seria ‘’nosso sangue’’:

— “Vamos esquecer toda essa confusão que está acontecendo no Brasil e vamos pensar que a seleção brasileira é o nosso país, é o nosso sangue. Não vamos vaiar a seleção. Vamos apoiar até o final”.

E reiterou:

— “Vou pedir mais uma vez aos brasileiros para não confundirem as coisas. Estamos iniciando uma preparação para a Copa do Mundo. A Copa das Confederações serve muito para a gente ter uma base de como vai ser a nossa equipe”.

Thuram, que em entrevista ao SporTV, deixou claro seu desapontamento com Pelé pela sua falta de posicionamentos claros contra o racismo e outras mazelas sociais, desferiu-o uma série de críticas, chegando a cogitar uma falta de ”grandeza de alma” e certa ”arrogância”, comentou:

— ”Há muitas pessoas que sempre estão perto do poder. Desgraçadamente, é o caso de Pelé, que conserva essa atitude. É uma pena, porque, com seu poder midiático, poderia ter contribuído para mudar as coisas. Lembro, em 2013, durante a Copa das Confederações, em que pediu para que brasileiros não protestassem, apesar das carências do Brasil”, lamentou Thuram.

O que fez, inclusive, com que Lilian não pusesse Pelé em seu livro ”As minhas estrelas negras”, onde ele cita diversas personalidades negras que influenciaram sua vida, assim como de muitas outras pessoas. Portanto, personalidades como Barack Obama, Frantz Fanon, Nelson Mandela, Billie Holiday, Rosa Parks e Malcolm X tiveram presença garantida em seu panteão. 

Caso Daniel Alves 

No jogo entre Barcelona x Villareal, em 2014, onde fora arremessada uma banana na direção de Dani Alves, que de maneira inusitada respondeu as injúrias comendo-a, também foi pauta para a opinião de Thuram, em entrevista ao SporTV: 

— ”Cada um de nós, quando sofre um ato de racismo, um ato racista, nós não sabemos como esse problema será resolvido. O que Daniel Alves fez foi algo muito interessante. Porque, na verdade, ele sofre um ato de racismo, e ele, que sofre o ato, é que deve encontrar a solução. Porque ele está só dentro de campo. Portanto, tem o árbitro, os outros jogadores… E temos a impressão que só ele viu a banana. E pensamos, essa banana, o que ele faz com ela? Ele decidiu comer. Eu acho que não deveria ser ele a achar a solução. Neste momento, não é a pessoa que sofre a violência que deve se defender sozinha.”

— ”Eu gostaria que tivesse sido o árbitro que interviesse e que os outros jogadores interviessem para mostrar que esse ato não é aceito dentro de campo.”
— ”Mas Daniel Alves resolveu o problema, ele comeu a banana, e a partida continuou. É essa a hipocrisia. Porque o jogo tem que continuar. E eu acho que, se quisermos mudar as coisas, é preciso ter coragem para que o jogo pare para gerar reflexão.”

Moise Kean e a reação de Bonucci 

E também no episódio entre Cagliari x Juventus, em 2019, Moise Kean, então atacante da Juve e filho de imigrantes da Costa do Marfim, passou o jogo inteiro ouvindo cantos racistas da ”curva norte”, onde ficam situados os torcedores extremistas do clube da Sardenha.  E, perto do fim da partida, marcou um dos gols da vitória da vechiasignora, e acabou indo comemorar em frente a torcida adversária fazendo um gesto com os braços abertos.  Leonardo Bonucci, zagueiro e um dos capitães dos bianconeros, disse que Kean teve 50% de culpa por ter ido comemorar em frente a torcida adversária. No jornal Le Parisien, Thuram comentou o ocorrido:

“Bonucci diz basicamente o que muita gente pensa: que os negros merecem o que acontece com eles. A pergunta correta para Bonucci seria: o que Kean fez para merecer tanto desprezo? [Bonucci] não disse para os torcedores que estão errados. O que fez foi dizer a Kean que ele estava provocando. A reação de Bonucci é tão violenta quanto os insultos. É como acontece quando uma mulher é estuprada e algumas pessoas falam sobre a forma como estava vestida. Por causa dessas pessoas é que as coisas não vão para frente”, disse Thuram.

Porém, Bonucci chegou a se retratar. Contudo, não colou.

O Sacerdote

Em suma, Thuram é daqueles que esfregam em nossas rostos como o futebol, o esporte no geral, está interligado a vida social. O campo, a quadra, o tatame, a pista, não são um mundo a parte do que vivemos. Portanto, estes espaços, também, jamais podem ser tratados como passivos de despejo à preconceitos, que devem ser combatidos em qualquer circunstância.

 

— ‘’PARA EXPLICARMOS O FÊNOMENO DO RACISMO NO FUTEBOL, PRECISAMOS EXPLICAR O FÊNOMENO DO RACISMO NA SOCIEDADE. AS SOCIEDADES, EM GERAL, SÃO CONSTRUÍDAS POR HIERARQUIAS’ BASEADAS, POR EXEMPLO, NA COR DA PELE. DURANTE SÉCULOS FOI NOS EXPLICADO QUE AS PESSOAS DE COR BRANCA ERAM SUPERIORES ÀS DE COR NEGRA, E ISSO GEROU O RACISMO. POR EXEMPLO PARA EXPLICARMOS O SEXISMO, É EXATAMENTE A MESMA COISA. A HIERARQUIA MAIS VELHA QUE EXISTE NA NOSSA SOCIEDADE É A ENTRE HOMENS E MULHERES. DURANTE SÉCULOS, FOI DITO QUE OS HOMENS ERAM SUPERIORES ÀS MULHERES, E OS HOMENS ACABARAM POR ACREDITAR QUE ISSO ERA VERDADE. ‘’ – DISSE THURAM.

 

você pode gostar também